O cineasta paulista Ícaro Martins iniciou um debate nesta semana que promete gerar polêmica. Ele defende a duplicação do imposto sobre a remessa de lucros dos filmes estrangeiros exibidos no Brasil (o artigo terceiro da Lei do Audiovisual), como forma de retaliar comercialmente os Estados Unidos, que tem adotado medidas econômicas prejudiciais aos interesses dos exportadores brasileiros. E vai adiante: propõe que esses recursos – se realmente eles forem obtidos, o que não é tarefa fácil – sejam distribuídos como adicional de renda para os filmes nacionais, mecanismo que, inclusive, já existe. Seria, portanto, um incentivo para quem faz filmes com vocação comercial, rumo a uma pretendida situação de auto-sustentabilidade do nosso cinema. Quem faz filmes mais rentáveis ganha mais.
A proposta do Ícaro tenta acender uma vela para Deus (o cinema) e outra para o Diabo (o mercado). Ou exatamente o contrário, depende da religião de cada um. Mas há uma clara tentativa de conciliar um viés protecionista com um discurso que soe mais “moderno”. Essa continua sendo a nossa sina: fazer de conta que temos uma atividade econômica como qualquer outra, visando ao lucro, enquanto estamos muito mais preocupados com a qualidade artística da obra. A velha e inevitável esquizofrenia do cinema, que o Domingos de Oliveira tenta atacar com sua proposta inovadora de um Ministério da Arte.
Acho a idéia do Ícaro interessante, mas ela depende de uma transformação muito grande na maneira como o Brasil vê o seu cinema. O que ele propõe é a ampliação de um mecanismo que já mostrou sua eficiência em muitos países. Na França, o adicional de renda é fórmula consagrada e impulsiona o cinema comercial há muitos anos. Ninguém mais discute se esse protecionismo é bom ou ruim. Ele existe, está na legislação, faz parte da famosa “exceção cultural” que os franceses cultivam desde o final da Segunda Guerra. Se os distribuidores estrangeiros não gostam (e certamente não gostam, pois tornam o produto nacional muito mais competitivo), nada podem fazer: a França é um país independente, por conta de algumas revoluções populares feitas, principalmente, nas ruas de Paris.
O Brasil não é. Acho que a proposta do Ícaro depende um grito de independência que, infelizmente, não temos ainda condições de gritar. É um clichê dizer que nossas maiores revoluções foram movimentos de uma elite militar financiada por uma elite econômica. O clichê mais verdadeiro que conheço. O povo, como diz Nei Lisboa, quer comer. E, se possível, um emprego de ascensorista no Senado. E o cinema nacional que se dane. Aliás, pra que cinema, se as novelas contam histórias melhores, e de graça?
O francês tem orgulho do seu cinema, da sua música, do seu teatro. Todos eles protegidos pelo Estado. Aliás, sempre é bom lembrar que o cinema norte-americano, leia-se Hollywood, foi extremamente protegido e incentivado pelo Estado desde os anos 1920. Também é bom lembrar que as principais relações entre a consagrada indústria do cinema e a então incipiente (mas ameaçadora) televisão foram reguladas por lei no final dos anos 30. O liberalismo norte-americano é conversa fiada. E velha.
Voltando à retaliação proposta pelo Ícaro. Se depender de aprovação do Senado e da Câmera (e acho que depende, pois mexe em lei federal), terá o mesmo destino do PL29: tramitação longa e complicada nas diversas comissões, emendas de todos os tipos, morte anunciada, lenta e dolorosa. Resumindo: não passa. Então, como diria Lênin, o que fazer? Talvez aproveitar esse debate sobre retaliação comercial para fazer os brasileiros pensarem mais sobre o seu cinema. É uma boa hora para isso. Temos muitos filmes interessantes, tivemos uma razoável (para nossos padrões) ocupação do mercado em 2009 e uma boa visibilidade internacional. Se os brasileiros discutirem a questão e decidirem que é possível enfrentar o protecionismo do governo norte-americano com medidas de apoio à produção cultural brasileira, quem sabe, a longo prazo, poderemos criar uma relação diferente entre a população e os filmes, as peças de teatro, as obras musicais e literárias. Se os brasileiros não tiveram orgulho da arte brasileira, se não lutarem por ela, não há ministério, lei ou governo que dê conta do recado.