Não sei se Lars von Trier pretendia fazer alguma associação de seu filme com a obra de Nietzsche. Se pretendia, não conseguiu. “O Anti-Cristo” de Nietzsche é uma das tantas marteladas que o filósofo aplicou, com sua habitual fúria e talento, no idealismo cristão, que por sua vez seria um “platonismo para as massas”. Nietzsche defende um homem histórico, consciente, capaz de ser protagonista de sua vida e ir atrás de seus desejos. Para isso, não pode criar um outro mundo após a morte, em que os sofrimentos terrenos serão recompensados pelas alegrias eternas do paraíso. Para Nietzsche, esse afastamento dos desejos gera uma “moral de escravos”. Resumir Nietzsche em um parágrafo talvez não seja a melhor idéia para o texto de um blog, mas peço desculpas: é apenas para subsidiar uma rápida reflexão sobre o filme de Von Trier.
Os dez primeiros minutos são uma obra-prima. Roteiro, imagem, música, montagem, atuação, tudo que está em quadro, mais aquilo que imaginamos estar fora do quadro, são impressionantes, emocionantes, quase definitivos. Sexo e morte num abraço apertado. Gozo e terror misturados. O ponto mais alto e o ponto mais baixo da experiência humana separados por alguns segundos. A presença de um plano com sexo explícito é coerente, necessária, dramática e impactante. Enfim, Lars von Trier construiu uma cena que vai ficar na memória de muitos espectadores para sempre. Nietzsche aplaudiria esse começo fantástico e talvez considerasse von Trier quase um super-homem.
Um longa-metragem, contudo, não se esgota em seus primeiros dez minutos. O restante do filme pouco tem a ver com a abertura. Mesmo que as atuações continuem intensas, e mais algumas imagens extraordinárias seja oferecidas, perde-se o essencial: a dramaticidade. Isolados numa cabana no meio do mato, marido e mulher procuram coisas distintas: ele quer de volta a mulher que ama (que, após a primeira cena, foi embora, rumo à loucura e ao isolamento catatônico); ela quer de volta apenas uma razão para viver. Parece um bom conflito. Mas não funciona. Os papéis assumidos pelos personagens – analista e analisada – talvez sejam uma crítica à psiquiatria, ou uma tentativa de mostrar sua fragilidade no trato do sofrimento humano. Só que, ao se consultar com um psiquiatra incompetente como aquele, até um sujeito “são” pode perder a paciência e a razão. A confusa história das mulheres massacradas, que se torna uma obsessão da esposa, parece levar o filme para um discurso feminista. Por outro lado, a aparição dos três animais conduz a história para um esoterismo primário. Às vezes parece Lynch, às vezes parece Bergman, às vezes parece apenas um desorientado von Trier. Ou um Baiestorf com um orçamento decente.
Saí do cinema à procura de um sentido (um sentido emocional, é claro), à procura de um buraco para olhar dentro da caixa. Acho que a chave para abrir a caixa sempre deve existir. Lynch sempre faz sentido; basta usar a chave de Lynch, em vez de usar a chave tradicional. “O cão andaluz” faz muito sentido. A chave de Buñuel é maravilhosa. Mas, por mais que eu procurasse, não achava uma boa razão para gostar do filme depois dos dez minutos iniciais. Aí pensei: a chave tem que ser o título: “Anti-cristo”. É um diálogo com a filosofia de Nietzsche, com o dionisíaco, com a vontade de poder, com o niilismo positivo, com o eterno retorno, ou com sei lá com o quê. Ainda estou à procura. Por favor, leitores, me ajudem. Se alguém encontrar a chave, manda pra mim. Aí, quem sabe, eu possa mudar minha recomendação: assista apenas aos primeiros dez minutos de “Anti-Cristo”, saia do cinema e vá comprar o livro do Nietzshe. Aí, quem sabe, alguma coisa faça sentido.
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A série musical em sete episódios “Um ano em Vortex” estreia no proximo dia 29 de novembro, na Cuboplay. Na noite anterior, um show histórico, com as sete bandas da série, acontece no bar Ocidente (ingressos à venda no Sympla).
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