Hoje todo mundo se diz fotógrafo, cineasta, repórter, escritor. De certo modo, isso é verdade. As ferramentas para criar representações do mundo e fazê-las circular na internet transformaram muito as relações entre o emissor e o receptor, que podem mudar de papel facilmente. Mas, por outro lado, isso também é uma grande mentira. Ter a ferramenta não significa possuir todas as habilidades necessárias para fazer uma representação do mundo que seja socialmente relevante. Ou pelo menos humanamente relevante. A lata de lixo da história está cada vez mais abarrotada de fotos, filmes, reportagens e livros que não têm nada a dizer.
Vou dar um exemplo. Eu, como todo mundo, fiquei sabendo do terremoto no Haiti minutos depois que ele aconteceu. Em questão de horas havia dezenas de vídeos e fotos disponíveis. No dia seguinte, circulavam centenas de relatos sobre as mortes, o caos, os cadáveres, o sofrimento. Li e vi tudo, impresso nos jornais e na tela do computador, e, mesmo assim, o Haiti continuou sendo um país distante, atingido por uma catástrofe terrível, mas que não me dizia respeito. Até ontem, eu não lembrava de uma única imagem , ou de uma única frase, que representasse emocionalmente o que aconteceu. Veio o terremoto do Chile, acompanhado de mais um tsunami de imagens e textos, e a tendência seria esquecer o Haiti.
E aí, ontem, comprei a Photo de março, com 16 páginas de fotos sobre o terremoto do Haiti. Às vezes a Photo faz isso: História. Nem sempre. Mas dessa vez fez, e muito bem. É uma edição com as melhores imagens dos seguintes fotógrafos: Orlando Barria, Lannis Water, Thony Belizaire, Eduardo Munoz, Joe Raedle, Daniel Morel, Fréderic Sauterau, Olivier Laban-Mattei, Logan Abassi, Paul Hensen, Carlos Barria, Tatyana Makeyeva, Pierre Terdjman, Gerald Herbert, Carolyn Cole, Marco Dormino, James Nachtwey (olha o cara aí!, o maior de todos, o sujeito que superou Robert Capa) e Chris Harris. Esses são FOTÓGRAFOS, profissionais do ramo, especialistas na arte de emocionar e informar com imagens. Diferentes nacionalidades, diferentes agências, mas uma coisa em comum: eles estão preparados para representar o mundo com relevância.
Ninguém escapa ileso dessas fotos. Duas ficaram grudadas na minha cabeça: um funcionário do necrotério atirando o corpo de uma criança sobre uma pilha de cadáveres (de Olivier Laban-Mattei) e um corpo prensado entre duas lajes de um edifício (de Joe Raedle). Ali está a morte, com toda a sua crueza – e com toda a sua transcendência. James Nachtwey, no filme “War Photographer”, de Christian Frey, explica como é possível fotografar momentos como esse, de tanta dor, tão perto das vítima. É preciso conectar-se emocionalmente com o que está acontecendo, falar pouco, andar devagar, mostrar que as fotos têm apenas um objetivo: mostrar a tragédia para o mundo. As pessoas, então, se deixam fotografar, porque têm a esperança de que os seus rostos, congelados pela máquina, serão as melhores testemunhas do que aconteceu com elas.
Não vou publicar aqui nenhuma das fotos. Acho que é muito melhor comprar a revista, ou pedir emprestado, ou tentar achar alguma coisa no site da Photo. O título da seção é perfeito: “Haiti: les images qui resteront” (“Haiti: as imagens que permanecerão”). As imagens de morte no Haiti são milhares, mas são estas que continuam grudadas na minha cabeça quando fecho os olhos e vou dormir.
Não é fácil, mas quem disse que a morte deve ser fácil?