28 janeiro 2021 por Roger Lerina
Uma praga planetária surgida subitamente obriga a população a ficar em isolamento, provocando reações como solidão, depressão e até negação da realidade. Mas não se trata aqui da pandemia do novo coronavírus: a descrição pode servir de sinopse para A Nuvem Rosa, filme escrito em 2017 e rodado em 2019 – antes, portanto, do surgimento da Covid-19. Escrito e dirigido por Iuli Gerbase, o longa-metragem é o único brasileiro selecionado para o Festival de Sundance 2021, um dos mais importantes do mundo cinematográfico, que se inicia nesta quinta-feira (28/1), na cidade norte-americana de Park City. O evento criado pelo astro Robert Redford terá ainda um outro título nacional: o curta Inabitável, de Matheus Farias e Enock Carvalho, vencedor de quatro prêmios no 48º Festival de Gramado, participará da mostra competitiva da categoria em Sundance.
A Nuvem Rosa acompanha Giovana (Renata de Lélis), obrigada a ficar trancada em seu apartamento com Yago (Eduardo Mendonça), rapaz que ela havia recém conhecido em uma festa. Enquanto esperam a misteriosa nuvem tóxica passar, que mata em 10 segundos qualquer pessoa que tenha contato com a atmosfera, eles precisam conviver como um casal. Os anos vão passando e Yago acostuma-se com a situação, vivendo uma realidade própria, enquanto Giovana sente-se cada vez mais aprisionada.
Em Sundance, o filme participa da categoria World Dramatic Competition. “É uma enorme coincidência lançar um filme sobre personagens presos em meio a uma quarentena mundial. Já estávamos editando o filme há meses quando a pandemia começou, e a sensação de termos filmado o futuro sem querer foi muito estranha, principalmente por termos um elemento surrealista tão presente na história”, explica a diretora.
A Nuvem Rosa é o primeiro longa-metragem da realizadora gaúcha Iuli Gerbase, que já assinou seis curtas, selecionados para diversos festivais internacionais como TIFF e Havana Film Festival. No Festival de Gramado de 2019, seu filme A Pedra levou uma Menção Honrosa na competição de curtas brasileiros.
“A Nuvem Rosa”, filme brasileiro sobre confinamento, é selecionado para o Festival de Sundance
“O público vai poder se identificar muito com os conflitos emocionais dos personagens, porém sabendo que sairemos dessa situação em um futuro próximo. Além disso, como nunca foi a intenção de que a nuvem representasse um vírus, acreditamos que o filme vai além da pandemia e traz reflexões que continuarão a ser pertinentes por muitos anos, como a repressão às mulheres e o desejo de liberdade”, avalia Iuli.
Com distribuição da O2 Play e produzido pela Prana Filmes, A Nuvem Rosa tem previsão de estreia em 2021. “Temos expectativa de participar de outros festivais internacionais e brasileiros. A Nuvem Rosa dialoga diretamente com o momento em que vivemos, por isso, temos certeza que muitos espectadores, de diferentes culturas e nacionalidades, irão se identificar com o filme e apreciá-lo”, comenta a produtora executiva Patricia Barbieri.
Na entrevista exclusiva a seguir, Iuli Gerbase aborda a relação de A Nuvem Rosa com a atual pandemia, comenta as referências estéticas e temáticas do filme e analisa a presença das mulheres no audiovisual brasileiro: “O que alguns homens ainda precisam aprender é parar de interromper as mulheres quando elas estão falando nas reuniões. Às vezes ainda sinto que alguns estranham trabalhar com uma mulher na direção, mas espero que se acostumem e respeitem da mesma maneira que respeitam os homens”.
Qual é a sensação de ter produzido um filme que acabou se mostrando tão antecipatório e representativo da realidade atual?
Foi surreal para mim e para a equipe. Nunca imaginávamos que um filme com uma premissa de ficção científica, com uma nuvem rosa tóxica que deixa as pessoas em casa, iria acabar refletindo tanto a nossa realidade de 2020. Nas primeiras semanas de pandemia, toda a equipe me mandou mensagem dizendo que eu havia previsto o futuro e pedindo que o próximo roteiro fosse mais positivo, caso se tornasse realidade também.
Qual é a importância de ter seu longa de estreia selecionado por um festival prestigiado como Sundance?
A notícia de Sundance foi incrível. É um festival tão difícil de entrar que eu nem estava com muita esperança para ele, então fiquei em choque, superfeliz. Estou ansiosa para ver os outros filmes da programação.
A Nuvem Rosa ecoa títulos como A Bruma Assassina (1980), de John Carpenter, e em particular O Último Suspiro (2018), de Daniel Roby. Quais foram as referências – cinematográficas ou não – para a criação do roteiro do filme?
Duas referências importantes no desenvolvimento do roteiro foram O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, em que os personagens também estão presos e não é explicado como ou por que, e a peça Entre Quatro Paredes, de Sartre, que mostra as angústias de lidar com outras pessoas dentro de um confinamento.
A Nuvem Rosa inclui elementos de ficção científica e de filme catástrofe. Como esse toque de cinema de gênero se articula com os aspectos dramáticos da história?
A ideia sempre foi, a partir dessa premissa de ficção científica, focar no drama dos personagens de maneira intimista. Depois que as regras da nuvem estão estabelecidas, o filme se aprofunda no relacionamento deles e nas reações opostas que eles desenvolvem quanto à nuvem e à falta de liberdade. Gosto de filmes de ficção científica mais focados em personagens e com menos ação, como por exemplo Sob a Pele, de Jonathan Glazer.
Além de abordar questões sociais e dramáticas universais, o filme também coloca em discussão os papéis impostos às mulheres na sociedade, o machismo e a maternidade. Comente um pouco esses aspectos da história, por favor.
A protagonista, Giovana, não pretendia ficar com Yago por mais que uma noite, porém a nuvem impõe para ela uma espécie de casamento monogâmico forçado. Enquanto Yago se adapta melhor à nova vida de confinamento, Giovana sente-se presa, vivendo uma vida que não estava nos planos dela. A cor da nuvem, um rosa suave, faz ela parecer inofensiva, até sedutora, e é uma cor tipicamente ligada a estereótipos femininos. A ideia é que essa cor que parece tão delicada se mostrasse torturante para Giovana com o passar do tempo.
Um dos destaques de A Nuvem Rosa é a atuação e conexão entre o casal protagonista. Como foi a escolha e o trabalho de preparação de Renata de Lélis e Eduardo Mendonça?
Eu já havia trabalhado com os dois atores em curtas que dirigi, então sabia que ambos eram muito talentosos. Eles também já se conheciam e eram amigos, o que ajudou para criar a química entre eles. Ensaiamos muito antes da filmagem, pois além do filme ter cenas desafiadoras para os atores, tínhamos que desvendar juntos quais seriam os efeitos psicológicos da passagem do tempo. Eles se entregaram para o filme, e tínhamos uma confiança mútua que acredito que resultou em performances ótimas. Tenho muito orgulho deles quando assisto ao filme.
Mesmo que ainda haja muito a conquistar, as mulheres estão cada vez mais presentes na indústria audiovisual brasileira, destacando-se em funções como direção, roteiro e outras atividades técnicas. Você concorda com essa avaliação? Por quê?
Sim. É visível, comparando o mercado agora com o mercado de 20 anos atrás, que antigamente as mulheres estavam bastante presentes na produção, porém eram poucas na direção e roteiro. Esse número vem crescendo visivelmente, e torço para que continue aumentando. O que alguns homens ainda precisam aprender é parar de interromper as mulheres quando elas estão falando nas reuniões. Às vezes ainda sinto que alguns estranham trabalhar com uma mulher na direção, mas espero que se acostumem e respeitem da mesma maneira que respeitam os homens.
Fonte: https://www.matinaljornalismo.com.br/rogerlerina/cinema/iuli-gerbase-sundance-nuvem-rosa/
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