Será que a atual Lei dos Direitos Autorais é usada para defender os direitos dos autores, ou é um instrumento de disputa econômica e política? François Ewald, em “Foucault: a norma e o direito” (2000), explica que:
"Aquilo a que chamamos direito – em geral – é uma categoria do pensamento que não designa nenhuma essência; se a historicidade pertence ao direito, a procura de uma tal essência é, por princípio, vã. O nome de direito serve para qualificar certas práticas: práticas normativas, práticas da coerção e da sanção social, sem dúvida, prática política certamente, prática da racionalidade também." (p. 160)
A tentativa do ECAD de fechar salas de cinema que não recolhem os direitos autorais da exibição pública das trilhas é um excelente exemplo de coerção social. E, ao mesmo tempo, uma eficiente estratégia para investir o músico como co-autor dos filmes, num “regime de verdade” que tem base jurídica, mas que deve ser sustentado no dia-a-dia, naquilo que Foucalt chama de “microfísica do poder”. Cada notícia de jornal dando conta do “não-pagamento dos direitos autorais aos músicos da trilha” reforça a sua imagem de “verdadeiros” autores. A ausência de notícias semelhantes sobre ações de montadores e diretores de fotografia, pouco a pouco, diminui sua possibilidade de pleitear também a co-autoria.
Esse tipo de argumento, de base mais filosófica que jurídica, provavelmente não funcionaria muito bem num tribunal. E um juiz, ao receber a apelação do ECAD, jamais citaria Foucault para indeferir a causa. Mas sempre há espaço para uma discussão mais normativa, a exemplo do que Agnes Heller faz em “Além da justiça” (1998):
"A aplicação das mesmas normas e regras a cada um dos membros de um grupo ao qual tais normas e regras se aplicam é um imperativo moral junto com a consistência na aplicação, mesmo não sendo elas de natureza moral. Por outro lado, fazer exceções na aplicação dessas normas e regras é uma ofensa moral, ainda que o assunto não seja de procedência moral. Assim, um ato injusto é moralmente errado por si mesmo, independente do fato de marcar, julgar ou classificar ter algo a ver com a moral daqueles em cuja direção agimos ou a quem classificamos." (p. 23)
Desse ponto de vista, as tentativas do ECAD de cobrar direitos autorais apenas para os músicos, deixando diretores e roteiristas, que fazem parte do mesmo grupo ao qual tais normas e regras se aplicam é uma ofensa moral. O fato de um juiz aceitar a ação (por ser legal) não retira a imoralidade da ação. O argumento do ECAD de que defende apenas aos músicos, e que os outros autores devem cuidar de seus próprios interesses seria o mesmo argumento dos advogados do dono do terreno e dos porcos de “Ilha das Flores”: os seres humanos que se virem e arranjem seus próprios advogados. Ou, no pragmático resumo dos diretores de fotografia, tantas vezes pronunciado nos sets quando o microfonista não consegue posicionar o “boom” sem fazer sombra no cenário: “Cada um com seus problemas”.
Agnes Heller vai além:
"Não seria justo, pelo bem da simplicidade, considerar-se as normas e regras como certas. Obviamente, elas podem ser questionadas. As normas e regras que constituem um grupo social podem ser claramente injustas, ou seu procedimento ser declarado injusto, mesmo se as normas e regras em questão forem consistentemente aplicadas a cada um dos membros do agrupamento." (p.23)
Aplicando a afirmação de Heller ao nosso dilema: mesmo que diretores e roteiristas também estivessem pleiteando os seus 2,5% dos direitos autorais pela exibição pública, constituindo assim o agrupamento previsto pela lei, de forma aparentemente aleatória, a ausência do diretor de fotografia e do montador (este o único a manipular imagens e sons num processo essencialmente cinematográfico, e não emprestado de outras linguagens), estaria constituída uma injustiça.
O que acontece, na prática, é que o ECAD – em nome dos compositores, e usando uma estrutura organizacional criada em 1973, hoje detentora de uma força econômica e política considerável – faz, a partir da LDA (1998), o que os roteiristas e diretores não conseguem fazer: pleitear uma fatia considerável das bilheterias cinematográficas, num mecanismo de coerção legal, mesmo que imoral. Como se deu a redação e a aprovação destas leis no Congresso, ou como ela foram regulamentadas e colocadas em prática, são assuntos para os historiadores do poder.
EWALD, François. Foucault: a norma e o direito. Lisboa: Vega, 2000
HELLER, Agnes. Além da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
A série musical em sete episódios “Um ano em Vortex” estreia no proximo dia 29 de novembro, na Cuboplay. Na noite anterior, um show histórico, com as sete bandas da série, acontece no bar Ocidente (ingressos à venda no Sympla).
Sessão única de A Nuvem Rosa em Londres! 14 de novembro, com debate com a diretora Iuli Gerbase. Tickets à venda no insta do @cine.brazil
Filmada em 2021, ainda sob os efeitos da pandemia e cumprindo rigorosos protocolos de saúde, a série em 10 episódios “Centro Liberdade” começa a ser exibida pela TV Brasil no próximo dia 19 de julho. Resultado do edital “TVs Públicas”, a série foi escrita e dirigida por Bruno Carvalho, Cleverton Borges e Livia Ruas, com […]
Acesse a entrevista aqui.