Direitos autorais (4): ECAD

Desde que as salas de cinema "Aeroclube", da cidade de Salvador, Bahia, foram fechadas durante uma semana, em 2003, por uma ação do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), por supostamente sonegarem o pagamento de direitos autorais referentes às trilhas musicais dos filmes apresentados, iniciou-se uma movimentada batalha jurídica que envolve os exibidores, os músicos, o próprio ECAD e os produtores dos filmes. O ECAD alega que, segundo a legislação em vigor, todos os cinemas brasileiros devem destinar uma parte da renda bruta de suas bilheterias para o pagamento da exibição pública das músicas que estão na trilha, independente do que os produtores já pagaram pela inclusão (ou "sincronização", em linguagem técnica) de suas obras nos filmes. Esta sincronização – quase sempre de valor alto, no contexto da média dos orçamentos do cinema brasileiro – é resultado de longas negociações das empresas produtoras com as editoras das respectivas obras musicais e com os produtores fonográficos (no caso de uso de músicas já gravadas).

 

Além disso, o ECAD fixou em 2,5% o percentual pela exibição pública. De onde surgiu este número, que não está previsto na Lei de Direitos Autorais vigente? Que tipo de cálculo foi utilizado? Ao que tudo indica, foi o próprio ECAD que decidiu cobrar 2,5%, em nome dos músicos que diz representar (na verdade, das associações a que os músicos são filiados). Se houve uma negociação para determinar este percentual, quem participou dela, e com que tipo de representação?

 

Em dezembro de 2003, provavelmente pressionados pelos exibidores, os senadores João Capiberibe (PSB-AP) e Paulo Octávio (PFL-DF) apresentaram o Projeto de Lei nº 532, que previa a modificação das normas de pagamento de direitos autorais de trilhas sonoras exibidos em salas de cinema do país. O ECAD então mostrou sua força, levando "indignados" compositores para Senado. Os músicos afirmaram que o projeto de lei era um retrocesso, e a legislação não foi modificada. De 2003 para cá, uma importante rede de cinemas, a LSR (Luís Severiano Ribeiro), fez um acordo com o ECAD e está pagando suas supostas dívidas, enquanto outras preferem contestar a cobrança na justiça.

 

Não é nossa intenção discutir o processo legal, que vai se arrastar por muitos anos, com argumentos de todas as partes e com todas as filigranas de praxe, e sim procurar, num embate jurídico (na verdade, jurídico-político), as questões de fundo. Por exemplo: o que faz o compositor da trilha sonora de um filme ser considerado um dos seus autores, enquanto o diretor de fotografia, o diretor de arte e o montador não são assim considerados? O advogado Alessandro de Oliveira Amadeu, no artigo "O diretor e a autoria da obra cinematográfica", da Revista de Cinema (agosto de 2007), explica que:

 

"(…) o legislador nacional optou por selecionar e indicar as atuações que seriam elevadas à condição de autores da obra cinematográfica; ou seja, com o intuito de beneficiar um maior número de detentores de direitos intelectuais que atuam nas obras cinematográficas, o legislador, fictamente, escolheu algumas modalidades de autores em detrimento de outras.

 

"Assim, a atual legislação brasileira determina que será considerado autor da obra audiovisual: o autor do argumento literário, o autor do argumento musical/lítero-musical e o diretor, este último sendo o responsável por conferir identidade artística à obra cinematográfica." (AMADEU, 2007, p. 50)

 

O que faz o compositor do "argumento lítero-musical" (traduzindo: as músicas e canções que estão na trilha sonora de um filme), o roteirista e o diretor serem considerado "autores", enquanto o montador e o fotógrafo não são? Cremos que há duas explicações distintas. No caso do roteirista e do diretor, a origem está na famosa política dos autores, um dos pilares mais importantes dos cinemas novos, que, na década de 1960, revolucionaram a concepção estética dos filmes em todo o mundo. Hoje – ao contrário da década de 1940, por exemplo, em que o produtor praticamente assumia a autoria, à medida que mantinha escritores e diretores sob contratos rígidos e decidia o que eles deviam fazer, inclusive do ponto de vista estético – ninguém contesta que roteiro e direção são bases autorais (e não simplesmente "técnicas" ou "instrumentais") para a criação de um filme. Uma lei que os ignorasse enquanto autores seria considerada ridícula.

 

Já a inclusão dos músicos, em detrimentos dos fotógrafos e dos montadores na LDA (Lei de Direitos Autorais, de 19 de fevereiro de 1998), em seu capítulo 2, artigo 16, tem uma outra explicação, de base nitidamente "foucaultiana": o poder político e econômico dos músicos, representados pelo ECAD, criou juridicamente a verdade que lhe interessava, da mesma forma que, em meados do século 19, as empresas de produção e distribuição de filmes, com sucessivas ações em tribunais (inclusive de base constitucional), criaram o instituto do "recriador da realidade fotográfica e cinematográfica" para, através da tutela desses direitos, e sua posterior transformação em "direitos intelectuais", transferidos para os empresários, assegurar o êxito de seus negócios.

 

O ECAD surgiu com base na Lei Federal nº 5.988 de 1973, que disciplinou a questão dos direitos autorais no Brasil e previu a criação de um escritório central de arrecadação. É uma entidade civil, de natureza privada, que reúne várias associações musicais, como ABRAMUS, AMAR, SBACEM, SICAM, SOCINPRO e UBC, todas também de natureza privada. Para centralizar a arrecadação e a distribuição dos direitos autorais dos músicos filiados a todas estas associações, o ECAD montou uma estrutura que, hoje, segundo o seu próprio "site", é muito poderosa:

 

"Com sede na cidade do Rio de Janeiro, 23 unidades arrecadadoras, 600 funcionários, 84 advogados prestadores de serviço e, aproximadamente, 240 agências autônomas instaladas em todos os Estados da Federação, a instituição possui ampla cobertura em todo o Brasil.

 

"O controle de informações é realizado por um sistema de dados totalmente informatizado e centralizado, que possui cadastrados em seu sistema mais de 214 mil titulares diferentes. Estão catalogadas 795 mil obras, além de 412 mil fonogramas, que contabilizam todas as versões registradas de cada música. Os números envolvidos fazem com que 40 a 50 mil boletos bancários sejam enviados por mês, cobrando os direitos autorais daqueles que utilizam as obras musicais publicamente, os chamados "usuários de música", que somam mais de 225 mil no cadastro do ECAD." (Site oficial do ECAD, 2007)

 

Com um exército de 84 advogados prestadores de serviço, o ECAD pode, entre outras coisas, acionar as salas de cinema para defender os interesses dos compositores de trilhas musicais. Não se tem notícia de qualquer ação semelhante movida por roteiristas e diretores, que, segundo a legislação, também poderiam cobrar direitos autorais pela exibição pública de suas obras. Aliás, se os mesmos 2,5% da bilheteria bruta das salas fossem destinados aos roteiristas e diretores, teríamos 7,5% da arrecadação comprometida apenas com direitos autorais. Esta parece ser a sugestão dos músicos: que os demais autores criem seus próprios órgãos centrais de arrecadação, à imagem e semelhança do ECAD. O problema é que a atuação do ECAD na defesa de seus associados é bastante polêmica. Há quem o defenda, mas há também – e são muitos – quem o acuse de ineficiência. E, na prática, 7,5% da bilheteria bruta para os autores previstos em lei seria uma fatia incompatível com o que recebe o próprio produtor do filme.

 

Estamos num impasse: enquanto o ECAD e seus associados querem fazer cumprir a lei, mesmo que a lei seja injusta, os demais autores legais já perceberam que a extensão do mesmo benefício é impossível, conforme parece ter se concluído no encontro que a APACI (Associação Paulista de Cineastas) organizou em São Paulo, no dia 17 de setembro de 2007, na forma de um "Seminário de Direitos Autorais", com patrocínio das Secretarias da Cultura do Estado e da Cidade de São Paulo, da Secretaria do Audiovisual/MInC e da Cinemateca Brasileira. Uma das resoluções deste encontro, conforme mensagem enviada pelo presidente da APACI, Ícaro Martins:

 

"Devem-se evitar soluções que impliquem a criação de grandes estruturas de arrecadação que, além de caras e contraproducentes para a área audiovisual, tornam-se excessivamente burocráticas, não transparentes, não representativas, repetindo-se erros de outras iniciativas." (Informativo Fundacine (2) 2007)

 

A resolução faz, obviamente, referência ao ECAD. Ao mesmo tempo, a APACI, a Associação Brasileira de Cineastas (ABRACI-RJ), a Associação dos Roteiristas (AR), e a de Autores de Cinema (AC), prometem constituir de uma sociedade de gestão coletiva de direitos de autor, além de um grupo de trabalho "para debater as questões relativas aos direitos dos autores audiovisuais, com o objetivo de revisar e atualizar a legislação de direitos autorais no Brasil". (Informativo Fundacine (2) 2007). Presume-se que essa futura e hipotética sociedade não terá a mesma estrutura do ECAD, nem defenderá a atual legislação.

 

O que coloca diretores, roteiristas, montadores e diretores de fotografia atrás dos compositores da trilha musical na ordem de recebimento dos direitos autorais da exibição pública de um filme é o mesmo mecanismo que coloca certos seres humanos atrás dos porcos na prioridade da escolha de alimentos atirados no lixo, mecanismo bem descrito no curta-metragem "Ilha das Flores", de Jorge Furtado. Os músicos têm um "dono", o ECAD, que cerca o terreno (estabelecido legalmente por um "título de propriedade", ou seja, a atual regulamentação dos direitos autorais) em que os dejetos (direitos autorais) são depositados. Os seres humanos (diretores e roteiristas) ficam esperando do lado de fora, e consumirão os alimentos que os porcos rejeitarem, SE sobrar alguma coisa.

 

Ou seja: as diferenças intrínsecas entre porcos e seres humanos não conta, e sim os papéis que eles desempenham na cadeia de relações econômicas do capitalismo. Enquanto roteiristas e diretores não tiverem um "dono" e um "terreno" definido pelo dono, continuarão atrás dos músicos, mesmo que, perante a lei, sejam todos igualmente co-autores de uma obra audiovisual. Em tempo: antes que surja a acusação de que equiparamos maldosamente músicos com porcos, é importante ressaltar que o autor deste ensaio, além de roteirista e diretor de cinema, também é músico (filiado à SICAM, que, por sua vez, é filiada ao ECAD). Para quem viu o filme, cremos que a metáfora está bem clara e não há maldade alguma. Além disso, ao contrário dos porcos de "Ilha das Flores", o ECAD não está alienado do drama dos diretores e roteiristas, que não recebem seus direitos, ficando do lado de fora da cerca. Pelo contrário: ele sugere que seja criado um novo "dono" e um novo "terreno", para então se discutir a repartição dos dejetos. Tudo no espírito da lei. Tudo na lógica das relações de poder.

 

AMADEU, Alessandro de Oliveira. O diretor e a autoria da obra cinematográfica. Revista de Cinema, ano VIII, edição 79, agosto/07. São Paulo: Editora Única, 2007

 

ECAD – A instituição. Site oficial do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). Disponível em: <www.ecad.org.br/ViewController/publico/conteudo.aspx?codigo=16,>. Acesso em: 22 ago. 2007

 

Guerra à pirataria reúne exibidores em Gramado. Informativo Fundacine (1). Disponível em: <www.fundacine.org.br/home.php? vz=200&vp=985,>. Acesso em: 25 ago. 2007

 

Direitos autorais no setor audiovisual em debate. Informativo Fundacine (2). Disponível em: <www.fundacine.org.br/home.php?vz=200&vp=983>. Acesso em: 25 ago. 2007

 

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