De ponta

Outro dia assisti a uma entrevista na TV do maratonista Paulo Roberto de Almeida Paula. Franzino, um pouco tímido, mas muito simpático, Paulo Roberto contou que, na preparação para a mais famosa prova das Olimpíadas, os atletas correm uns 30 e poucos quilômetros, e não os 42 que enfrentarão depois, por um motivo simples: correr todos os 42 quilômetros, no ritmo que eles necessitam para ter um bom resultado e alcançar os índices, sempre acarreta uma lesão. "A gente deixa pra ter a lesão na prova", explicou o sorridente Paulo Roberto. Também por esse motivo, um maratonista "de ponta"  participa de duas, no máximo de três, provas por ano. Nos intervalos, cura as lesões.

 

Que tipo de esporte é esse, que faz o corpo humano funcionar além do seu limite e prejudica o funcionamento normal dos seus órgãos? Que tipo de saúde é essa, que convive com dores quase insuportáveis e longos períodos de quase inatividade? No futebol, não é muito diferente. Cada vez mais, a preparação física planeja um condicionamento tão exigente que os músculos ficam à beira do  estresse. A necessidade de uma performance "de ponta" está enchendo os hospitais e os bolsos dos fisioterapeutas, em vez de levar a uma vida mais saudável.

 

A obsessão para obter resultados "de ponta", é claro,  não é exclusiva dos esportistas. Alguns cineastas, por exemplo, são famosos pela sua tirania e por levarem suas equipes à loucura, na busca do que consideram a perfeição. Stanley Kubrick era tão genial quanto maluco. Cada uma de suas obras-primas (e são muitas) têm uma longa história de relações pessoais deterioradas e brigas profissionais quase violentas. Tudo em nome de um filme "de ponta", daqueles que ficam na história.

 

Pergunto: isso vale a pena? A obsessão pelo resultado excepcional justifica todas as lesões – físicas e psicológicas – decorrentes de um comportamento maníaco no esporte e na arte?  Para os obsessivos a resposta, com certeza, é sim. Eles não funcionam de outra forma. Não têm escolha. Seus sacrifícios talvez estejam programados em seu código genético. Kubrick fazia de cada filme uma questão de vida ou morte. Sem espaço para negociações. Não viveu o suficiente para lançar "De olhos bem fechados". O corpo não aguentou a obra.

 

Acho que é mais saudável encontrar um caminho intermediário entre a obsessão (só o perfeito me satisfaz) e a indolência (tudo me satisfaz). Aristóteles já dizia que a virtude está no meio, e não nos extremos. Mas é possível ser um grande atleta sem levar o corpo aos seus limites, provocando dor e doença? É possível fazer uma grande obra de arte, um grande filme, sem sacrificar a própria vida (e a vida da equipe, dos familiares e dos amigos), numa busca obsessiva pela perfeição de cada plano?

 

Às vezes penso nos filmes que fiz como exercícios de testar limites e de descobrir minhas falhas. No Brasil, a regra é ter pouco tempo e pouco dinheiro, de modo que nunca – ou quase nunca – é possível sonhar com a perfeição. Fiz o que pude fazer, lidando com minhas próprias limitações intelectuais e com as contingências do País em que vivo. Estou longe, muito longe, de ser um cineasta "de ponta". Não corro 42 quilômetros em menos de duas horas e quinze minutos. Não faço filmes de grande orçamento. Nunca ganhei um Oscar ou uma Palma de Ouro (mas não menosprezo meus preciosos Kikitos e Candangos, nem o lindo troféu Capivara, de um festival do Mato Grosso). Estou disposto a continuar correndo no pelotão intermediário, achando que um dia vou "chegar lá". Essa ilusão também deve estar inscrita em meu código genético. Se não sou um obsessivo, sou, pelo menos, um teimoso.

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