Eron Duarte Fagundes e uma palestra sobre “Interlúdio”

Uma pequena introdução, por Carlos Gerbase

O Eron acompanha o cinema gaúcho desde o final dos anos 70, e a sua crítica ao meu filme "Inverno", de 1983, foi importante pra mim. Por isso, quando recebi o texto abaixo, sobre "Interlúdio" (de 82) fiquei com vontade de colocá-lo aqui. Um pouco de nostalgia faz bem. Correção importante: o Giba Assis Brasil é co-roteirista e co-diretor. Só o conto e a palestra em Rio Grande são de minha solitária autoria. Assim, o que o Eron fala do filme deve ser creditado a mim e ao Giba.  

 

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A palestra de Gerbase em Rio Grande, por Eron Duarte Fagundes

Deu-se que eu estava veraneando na praia do Cassino, em Rio Grande, por dez dias. Deu-se que se dava a 40ª Feira do Livro da FURG (Universidade Federal de Rio Grande), numa praça atrás da igreja. (Já me ocorrera antes numa viagem de Páscoa a Buenos Aires, na Argentina, em 2011: topei com uma feira do livro por lá, se não me engano no bairro Palermo, elegante, uma bela praça em frente ao local da Feira, e por lá vagava o escritor peruano Mario Vargas Llosa, cuja figura falante vi muito na televisão por aqueles dias. Eu persigo as feiras de livros, elas me perseguem: ainda bem!). Deu-se que no domingo de 27 de janeiro (sim, o mesmo do incêndio duma boate de universitários na cidade gaúcha de Santa Maria) um  cineasta gaúcho de minha geração, Carlos Gerbase, estaria dando uma palestra sobre a prática da adaptação da literatura para o cinema. Fui lá, sorrateiro e grato aos céus pelo presente: embalados na minha paixão viagem, literatura, cinema e um homem cuja iniciação estética também determinou minhas próprias iniciações nesta coisa de pensar o cinema e os livros.

 

Gerbase partiu logo para aquilo que prometia. Lançou do computador para a tela o texto de seu conto Interlúdio, publicado em 1979 pela L&PM. Gerbase e a professora Ana Ferreira Maio (sua interlocutora na palestra) leram parágrafo a parágrafo o breve conto, retrato de um jovem porto-alegrense nos anos 70 e o que acontece nos interlúdios de seus vagares sentimentais; a narrativa é em terceira pessoa, “ele”, mas é um pouco como se o narrador desembarcasse neste “ele” e fosse quase um “eu”, e ainda mais, como se Gerbasse falasse um pouco de si mesmo na época, não episodicamente, mas na estrutura emocional (evoquemos: é algo escrito por alguém com vinte anos de idade; o que pode significar muitas coisas em termos formais e temáticos). Lido o conto, Gerbase passou da oitiva das palavras à visão do filme curto Interlúdio, rodado em 1983. Durante sua projeção, para além das imagens articuladas com sabedoria por Gerbase, seu fotógrafo Norberto Lubisco (hoje nome duma sala de cinema em Porto Alegre) e seu montador Giba Assis Brasil, o espectador tem a impressão de que o narrador-over repete palavra por palavra o texto do conto.

 

Terminada a projeção, Gerbase revela as alterações que fez para dar base cinematográfica a um texto pensado originalmente como literatura. Não há voz-in no filme Interlúdio. Gerbase explicou esta ausência do discurso direto (o diálogo) e a manutenção do discurso indireto em que está o texto como contingência técnica: na época não havia por aqui câmara com som direto e, para evitar um diálogo de ruídos, optou pelo texto colado à imagem, como no cinema francês, por exemplo (na palestra exclamou seu entusiasmo pelo cinema do francês Eric Rohmer, uma de suas necessárias influências). (Estes problemas com filmes dialogados eram comuns no cinema gaúcho da época e um pouco também no cinema brasileiro. Um dos mais belos filmes gaúchos daqueles anos, 226, 1982, dirigido pelo crítico Tuio Becker, parecia abdicar das falas para que os ruídos pretendidos como diálogos não lhe atrapalhassem a intensa plasticidade. Um dos grandes filmes brasileiros do fim dos anos 70, Tudo bem, 1978, de Arnaldo Jabor, foi em parte marginalizado graças às dificuldades com seu som direto em nossas também precárias salas de exibição de então; vendo-o hoje na televisão, observa-se como a tecnologia atual apagou inteiramente aquilo que está na memória de quem o viu em 1978). Gerbase, pois, teve razão em não expor-se a diálogos em seu filme.

 

De outra parte, as diferenças de texto entre o conto e o filme são na verdade poucas e superficiais e talvez não determinassem tão essencial transformação no resultado final (no conto um dos cenários é o cinema Scala, onde os pombinhos vão ver “Kramer versus Kramer”, no filme altera-se para o cinema Coral; “ele distraiu-se” do conto vira “ele se distraiu” no filme). Mas é curioso atentar na palestra para o raciocínio das opções de adaptação de Gerbase e ver como de certa maneira este raciocínio pode fazer sentido mas não se sabe até que ponto a opção pelo contrário poderia melhorar ou piorar o produto.

 

Cinema é aquilo que é. Que está na tela. Assim, Interlúdio é um belo filme dos inícios de Gerbase. Que agora, do alto de sua maturidade, pode brindar o observador com uma palestra dialética cheia de vivacidade entre o que ele foi e como se articula este “foi” hoje em sua mente.
 

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