Moacyr Scliar, ficcionista

Conheci Moacyr Scliar em dezembro de 1981, no set de “No amor”, curta de Nelson Nadotti em que eu atuava como assistente de câmera para o fotógrafo Norberto Lubisco (além de ser um dos cinco produtores do filme). O roteiro, escrito pelo Nelson, era baseado no conto “O mistério dos hippies desaparecidos”, de Scliar, publicado em “Os mistérios de Porto Alegre” e cedido gratuitamente (portanto, “no amor”) para a adaptação. Scliar visitou o set com uma criança pequena no colo, seu filho Beto, que hoje é um conhecido fotógrafo. Aí vai a foto.

 

“No amor” foi muito importante para a minha turma na época (eu, Nelson Nadotti, Giba Assis Brasil, Hélio Alvarez e Sérgio Lerrer), porque foi nosso primeiro trabalho em 35mm, a bitola profissional do cinema. Antes desse curta, realizávamos tudo em super-8. Eu tinha 22 anos, e Scliar, o dobro, quase 44. Além disso, ele já era um escritor famoso, tendo publicado, entre outros títulos importantes, “A guerra no Bom Fim” (1972) e “O exército de um homem só” (1973). Eu tinha lido e gostado muito dos dois romances.

 

A presença de um escritor famoso como ele no set nos deixou muito felizes. Eu fiquei ainda mais contente ao verificar que Scliar era um homem bem humorado, simples, sem qualquer tipo de afetação. Conversamos com ele, explicamos algumas coisas do filme, e a responsabilidade de lidar com o texto de um autor consagrado pareceu diminuir um pouco. De certa forma, naquele dia ele entrou para a equipe e passou a ser mais um daquele bando de malucos que pretendia fazer cinema sem dinheiro e quase sem recursos técnicos.

 

No decorrer destes 30 anos, encontrei-me outras vezes com ele, em eventos culturais, e uma ou duas vezes na casa de Luis Fernando Veríssimo. Sempre bem humorado, sempre cheio de histórias para contar, sempre disposto a ouvir e compartilhar. Lembro de uma conversa que tivemos no interior do estado, uns seis ou sete anos atrás, em que eu comentei que tinha dificuldade, na hora de preencher o espaço destinado a profissão na ficha do hotel, para escrever a palavra “cineasta”, que eu achava pomposa demais. Ele disse que também achava a palavra “escritor” complicada e sugeriu: “A gente devia escrever ‘ficcionista’, o que define bem o que fazemos. Nós inventamos histórias, só isso.”

 

Scliar será enterrado amanhã. Não pude comparecer ao seu velório. Fica aqui minha homenagem a um homem talentoso, íntegro, um médico de primeira e um escritor consagrado que lidava com a fama com a humildade dos grandes criadores. Um judeu que sabia usar a cultura judaica para enaltecer a necessidade de estreitar as relações entre todas as raças e religiões. Sua eleição para a Academia Brasileira de Letras, pelo menos para mim, pouco importa. Não foi isso que o tornou imortal, e sim suas obras, seu bom humor e sua simplicidade. Obrigado, Scliar. Teus leitores e teus amigos estão tristes, mas não por muito tempo. A lembrança que deixas é de uma vida de muito trabalho e de muita alegria. Tem coisa melhor?

 

 

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