Filme da gaúcha Iuli Gerbase “previu” a pandemia, estreou com 100% de aprovação no Rotten Tomatoes e conquistou lugar no Festival de Sundance 2021
Não é de hoje que a ficção científica, em suas variadas manifestações, trabalha e brinca com a desconhecida resposta para uma pergunta que caminha paralela a humanidade: e se a raça humana se visse à beira da extinção, o que faríamos? A cineasta gaúcha Iuli Gerbase, lá em 2017, pensou, como premissa para seu primeiro longa, A Nuvem Rosa, abordar o que aconteceria se uma nuvem tóxica colocasse toda a humanidade em quarentena, obrigando as pessoas a ficarem presas por décadas no primeiro ambiente fechado próximo a elas. Em 2017, uma ameaça que forçava tal confinamento brusco era apenas um exemplo fictício de uma boa distopia. Em 2020, ela se tornou uma premonição.
No filme, produzido pela Prana Filmes e distribuído pela O2 Play Filmes, acompanhamos Giovana (Renata de Lélis), que está presa em um apartamento com Yago (Eduardo Mendonça), um cara que havia recém conhecido em uma festa. Enquanto esperam a nuvem passar, eles precisam viver como um casal. Ao longo dos anos, Yago vive sua própria utopia, enquanto Giovana sente-se cada vez mais aprisionada.
Muito além de ser apenas um filme que previu a pandemia, A Nuvem Rosa discute, de forma sutil e feroz, a retirada do direito à escolha (seja ela qual for) que a sociedade faz com as mulheres. O longa, que estreou no Festival de Sundance 2021, um dos maiores e mais respeitados festivais de cinema do mundo, não foi apenas um sucesso nos jornais americanos, mas também alcançou a valiosa marca de 100% de aprovação pelo Rotten Tomatoes, portal que reúne e faz a média das críticas.
Iuli, que acabou de ser indicada ao prêmio “Jordan Ressler First Feature Award” no Miami Film Festival, conversou com a gente sobre seus processos criativos, desafios na produção, inspirações e sobre seus processos criativos, desafios na produção, inspirações e sobre a representatividade das mulheres na área do cinema e o descaso com as produções nacionais.
Após sua exibição no Festival de Sundance 2021, o filme foi ovacionado pela crítica americana, tendo uma enorme repercussão na mídia nos Estados Unidos e alcançando 100% de aprovação no Rotten Tomatoes. Você esperava toda essa resposta?
Eu sempre espero que alguém vá gostar e que alguém não goste, mas a crítica que veio dos Estados Unidos foi tão positiva que fiquei chocada. Foi ótimo para a equipe, porque fala sobre muitos aspectos do filme, então eu mandava assim “Olha falaram de ti, falaram de ti”, e todos ficaram bem felizes.
Em entrevista à Variety, você comentou que tinha muito medo de que o filme fosse visto apenas como um filme “sobre a pandemia”, sendo que você o escreveu para ser um filme mais feminista, que retratasse a retirada do direito de escolha que as mulheres vivenciam. Acha que a audiência vai conseguir ver esse lado da obra ou observarão apenas a questão envolvendo o coronavírus?
Tudo tem um lado positivo e negativo. O lado positivo é que as pessoas estão se relacionando muito com os personagens, elas estão se vendo ali na cena. Então, por esse motivo, elas acabam se emocionando mais e é ótimo que as pessoas façam essa relação, que tenham essa semelhança pessoal com o filme. Porém, é claro, a questão da personagem, da mulher tendo seus desejos reprimidos, fica um pouco ofuscada. Algumas críticas perceberam essa temática no filme, observando a diferença das reações da personagem feminina com o masculino, então acho que há pessoas entendendo.
“Com o passar dos anos da Nuvem, as pessoas estão achando normais coisas que não deveriam ser normais, e tudo está se tornando um absurdo, e de um jeito silencioso, de um jeito que as pessoas estão aceitando”
Em determinado momento do filme, há uma cena que aborda a questão da violência sexual contra a criança e o adolescente. No Brasil, de acordo com dados do Disque 100 (2011-2017), em 92% das denúncias de violência sexual infantil as vítimas eram do sexo feminino. Ainda de acordo com o serviço de emergência, em 54% das denúncias, o agressor, que é majoritariamente do sexo masculino, é alguém próximo à vítima. Acha que essa representação no cinema pode abrir espaço para que discussões sobre o assunto aconteçam, especialmente aqui no Brasil?
Nessa cena, o que é triste é a personagem estar super cínica a respeito da violência, ela está falando como se não fosse nada. É uma situação muito complicada o que está acontecendo com a irmã da Giovana e é um dos fatores que faz com que a protagonista fique mais apavorada com essa situação absurda. Com o passar dos anos da Nuvem, as pessoas estão achando normais coisas que não deveriam ser normais, e tudo está se tornando um absurdo, e de um jeito silencioso, de um jeito que as pessoas estão aceitando.
“Tudo está se tornando um absurdo, e de um jeito silencioso, de um jeito que as pessoas estão aceitando.” Isso é um paralelo com a situação do Brasil e do mundo atualmente?
O filme mudou muito. Antes, em determinada etapa do roteiro, a Nuvem estava no mundo inteiro. Depois, quando o Presidente Jair Bolsonaro assumiu, a gente colocou a Nuvem só no Brasil, para fazermos um paralelo do tipo “o Brasil está intoxicado”. Com a pandemia do coronavírus, a Nuvem voltou a ser no mundo inteiro, porque estamos todos juntos nessa loucura, então faz mais sentido.
O roteiro do filme A Nuvem Rosa foi escrito em 2017. De onde surgiu a ideia de colocar a humanidade inteira em quarentena?
Gosto de escrever histórias de relacionamentos entre pessoas e seus conflitos, então a minha ambição, desde o começo, foi trabalhar esse relacionamento. Penso na Giovana e no Yago como um espelho de vários outros relacionamentos que estão acontecendo no mundo, pincelando várias coisas, mas focado nos dois. Então, por mais que seja uma ficção científica, é uma ficção científica intimista. A ideia inicial era: eu quero um casal que acabou de se conhecer, que passaria só uma noite juntos e de repente estão anos e anos juntos, numa situação absurda e sem escolha. O conceito da nuvem rosa surgiu porque eu queria um elemento mais surreal.
“Penso na Giovana e no Yago como um espelho de vários outros relacionamentos que estão acontecendo no mundo, pincelando várias coisas, mas focado nos dois. Então, por mais que seja uma ficção científica é uma ficção científica intimista”
No cinema e no audiovisual, o debate sobre a falta de oportunidades para as mulheres é uma discussão cada vez mais presente, principalmente nos últimos anos, com movimentos como o Time’s Up. Você acha que essas discussões estão surtindo efeito?
Felizmente, há mais espaços para as mulheres, que estão criando mais. Se você olhar algumas gerações antes da minha, as mulheres estavam muito na produção aqui no brasil. Grandes produtoras com mulheres no comando, mas que só ajeitavam o terreno para que os homens dirigissem e criassem. Agora, na minha geração e na geração um pouco mais velha, há mais diretoras que estão se destacando em festivais internacionais e nacionais, e isso é o básico. Sundance foi importante porque 50% dos filmes selecionados foram dirigidos por mulheres. A gente fazia os eventos e via um monte de mulher, e isso é uma grande diferença do que víamos no passado.
Como foi trabalhar com a Prana Filmes?
Eu tive muita liberdade com A Nuvem Rosa. Acho que as produtoras do Sul são muito guerreiras no sentido de que a gente trabalha com orçamentos bem menores do que Rio de Janeiro e São Paulo, os editais regionais são 1/3 do que se trabalha lá. As produtoras se esforçam para que o filme tenha qualidade artística, fique bonito, com um pagamento justo, mas sempre chegando no limite com o que podemos fazer dentro desse orçamento. Acho que isso é um grande mérito das produtoras do Sul. Creio que agora, no Brasil, não é o melhor momento para o setor cultural, mas espero que melhore e que os orçamentos possam ser maiores, porque a gente produz muitas coisas legais aqui.
Por usar verba pública, qual retorno vocês precisam dar para a sociedade?
Devolver todo o orçamento do filme. Com o fundo setorial do audiovisual (FSA) é sempre assim. Ele te dá o dinheiro e, à medida em que você vai vendendo o filme, no exterior ou Brasil, vai devolvendo aos poucos. É engraçado porque as pessoas falam tão mal de financiamento sendo que é um fundo que se alimenta por ele mesmo. A gente é muito criticado por usar o dinheiro público, mas as pessoas nem sabem como funciona.
“É engraçado porque as pessoas falam tão mal de financiamento sendo que é um fundo que se alimenta por ele mesmo. A gente é muito criticado por usar o dinheiro público, mas as pessoas nem sabem como funciona”
São Paulo e Rio de Janeiro são as duas cidades polos do audiovisual brasileiro. No entanto, o Brasil sempre possuiu uma forte produção cinematográfica regional, a exemplo dos longas gaúchos Beira-Mar (2015) e Yonlu (2017), os nordestinos Bacurau (2019) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Você crê que a fortificação do cinema independente regional permitirá a criação de uma identidade cinematográfica mais forte no país?
É sempre bom ter narrativas de todos os lugares do Brasil, porque ele é um país muito grande, então não dá para ficar só em Rio e São Paulo. Como brasileiro, muitas vezes a gente já pensa a história pensando na produção. Eu nem tenho vontade de criar produções gigantes, um épico, o que não quer dizer que eu acho que a gente não deva aumentar um pouco mais os orçamentos regionais porque, quando é apertado demais, fica um pouco chato para toda a equipe, mesmo que o filme seja só em um apartamento. O cinema digital nos ajudou muito a deixar tudo mais barato, a gente tem câmeras super em conta e, usando direito, fazendo um tratamento de cor legal, fica esteticamente super bonito. Acho que isso foi uma grande virada para o cinema.
Como foi a preparação dos atores principais e o seu trabalho com eles para viverem esse casal?
Eu já conhecia os dois, já tinha trabalhado em curtas-metragens com eles e eles já tinham uma intimidade de amigos. A gente ensaiou mais de um mês, com bastante frequência. Tivemos que ensaiar muito com as crianças, principalmente a de 4 anos, para ela se sentir à vontade com os adultos, fizemos muitas brincadeiras e jogos. Eu confio muito neles e eles confiaram muito em mim – e isso é muito importante. A gente não tinha medo de repetir. Eles podiam falar comigo abertamente e eu com eles, então conversamos muito sobre os personagens. Toda vez que eu vejo o filme, me orgulho muito dos dois, porque eles estão muito bem nos papéis.
Por que você escolheu a cor rosa para retratar a nuvem?
A ideia era fazer com que essa nuvem tivesse uma cara que não fosse assustadora, como as nuvens de filmes de terror. O objetivo era ser poética, bonita e meio sedutora. A ideia era de que fosse encantadora e que, conforme os anos fossem passando, eles vêem que a nuvem, na verdade, está afetando muito eles, principalmente as mulheres. E, claro, também escolhemos rosa porque é uma cor que está sempre associada à mulher.
No filme, com o passar da quarentena, um dos personagens passa a louvar a Nuvem Rosa, como se aquela gigante adversidade fosse algo positivo. Em uma cena do trailer, vemos o Yago (Eduardo Mendonça) louvando a Nuvem Rosa, transformando aquela perturbação quase que em uma figura divina. O que você quis dizer com essa cena?
A ideia sempre foi trabalhar o oposto nos personagens. Enquanto a Giovana piora cada vez mais, achando a situação absurda e tentando fugir dela, o Yago não fala explicitamente que está curtindo a vida com a Nuvem, mas tipo, ele sempre quis ter filho, agora tem um filho, agora ele está com uma mulher legal, uma mulher bonita e está em um apartamento confortável. Ele tem uma positividade tóxica. É uma daquelas pessoas que querem sempre ver o lado positivo, mas vão ao extremo. Ele nem sabe mais se quer que a nuvem vá embora, de tão acostumado que está com a situação. Então, quando ele reza para a nuvem, ele desviou completamente porque a coisa está mais tensa e mais macabra do que a gente imaginava.
Com a streaming, nota-se que muitos conteúdos de nicho se tornaram mainstream mesmo sem as pessoas saberem a diferenciação. Você crê que isso favorece o cinema independente e o de nicho?
Acho que sim. A gente não deve ficar rotulando tanto os filmes, porque, por exemplo, nunca fui grande fã de filmes de terror. Não por serem ruins, mas porque eu sou muito medrosa. No entanto, há terrores tão interessantes ultimamente que eu me esforço para ver e gosto, como o Corra! (2017), Midsommar (2019), os filmes da Juliana Rojas, que é maravilhosa, assim como o sci-fi. Então, com certeza é bom porque as pessoas, com o streaming, experimentam coisas novas.
A fotografia e a colorização do filme A Nuvem Rosa se destacam pelo seu poder e controle narrativo. Quem assina a direção de fotografia é o Bruno Polidoro. Como foi o processo de criação dessa estética? Você escolheu trabalhar com o Bruno?
Escolhi e não deixo ninguém mais escolher. Eu já trabalhei com ele em curtas meus e já trabalhei com ele em outros trabalhos. Ele é um parceiro incrível, a gente tem muita afinidade e ele é muito querido, além de ser muito talentoso. Um dos nossos desafios era como manter esse apartamento interessante, porque o filme é meio claustrofóbico, mas a gente não queria que fosse chato. Então, variamos os tons de rosa, e, com o trabalho da direção de arte, trouxemos essa variação das imagens, das cenas, dos movimentos, do cenário e isso foi muito importante para nós. Acho que há uma riqueza visual no filme, acho ele muito bonito: os tons de rosa, a correção de cor e como ele não usa o rosa sempre preenchendo tudo. Ficamos livres para criar um universo surrealista, mas que fosse interessante.
O Brasil é um país rico em cultura e um bom espelho disso é a variedade de músicas que temos por aqui. No entanto, no filme, a canção cantada não está em português, e sim em inglês com trechos em italiano. Por que optou por uma trilha assim?
Essa música foi criada por um brasileiro, toda a música do filme é original, e essa música, a La Vitta, tem esse tom irônico. Nós queríamos um tema que fosse um deboche, com uma letra em inglês que fosse muito boba. Queríamos que parecesse uma música dos anos 50, mas vinda de fora para trazer essa chacota e ironia de um filme americano dos anos 50, daquela dona de casa típica. Queríamos uma música que lembrasse um pouco da Doris Day, tanto que uma das nossas referências era a canção “Que Sera Sera (Whatever will be will be)”.
Você acabou de ser indicada para Jordan Ressler First Feature Award, na edição de 2021 do Miami Film Festival. Planeja manter o filme rodando no circuito de festivais?
Por mim, eu faria festivais o ano todo e gostaria de entrar nos festivais brasileiros, que são mais para o segundo semestre, mas ainda estamos vendo quando é a melhor data para lançar o filme, não sei se no cinema ou no streaming.
“Temos que abrir os olhos do público para valorizar o cinema brasileiro, porque, às vezes, me parece um complexo de vira-lata”
Como você vê a cooperação entre as cineastas mulheres entre si para poderem crescer no mercado?
Acho que as pessoas precisam aceitar a realidade, porque nós já provamos que fazemos filmes com muita qualidade em festivais que não estão nos fazendo nenhum favor ao colocar o nosso filme na seleção, são festivais que têm muita competição. A Petra foi indicada ao Oscar, a Juliana Rojas foi para Cannes mais de uma vez, a Anita Rocha da Silveira também, então acho que a nossa grande batalha aqui no Brasil não é nem só com as mulheres e, sim, com o preconceito do público brasileiro com os filmes nacionais. Tu vê às vezes comentários bobos tipo “ah, quando vão fazer algo que preste de filme nacional?” e as pessoas têm uma visão restrita. Se você comparar Elena (2012) com Bacurau (2019) e com A Vida Invisível (2019), percebe que são completamente diferentes, há filmes para todos os gostos. Temos que abrir os olhos do público para valorizar o cinema brasileiro, porque, às vezes, me parece um complexo de vira-lata.
Você que previu a quarentena, como você passou a sua?
Logo no começo, a gente brincava, a equipe e os atores, que já estávamos preparados, mas isso quando achávamos que a quarentena duraria só dois meses. Quando eu cogitava que ia durar um ano, eu mesma negava. Nos primeiros meses, tive muito dias de ansiedade. Imagina se tu escreves um filme de ficção científica e as coisas se tornam reais, sendo que era para ser tudo de mentira? Acho que para os atores que tinham passado mais por um processo de se imaginar psicologicamente e fisicamente, e aí tiveram que viver tudo de novo, foi pior. Eu passei escrevendo bastante, tinha prazos e roteiros para entregar. Felizmente, não peguei o covid e espero que estejamos chegando perto do final.
O que podemos esperar do seu trabalho no futuro?
É engraçado, porque se eu estiver prevendo o futuro de novo, vai haver um alienígena nos visitando. É isso que eu posso falar.
Por Gabriel Portella
1 Mar 2021
Fonte: https://elasticaoficial.com.br/especiais/nuvem-rosa-filme-pandemia-sundance/
A série musical em sete episódios “Um ano em Vortex” estreia no proximo dia 29 de novembro, na Cuboplay. Na noite anterior, um show histórico, com as sete bandas da série, acontece no bar Ocidente (ingressos à venda no Sympla).
Sessão única de A Nuvem Rosa em Londres! 14 de novembro, com debate com a diretora Iuli Gerbase. Tickets à venda no insta do @cine.brazil
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